Novo post de Rui Baptista, desta vez sobre o "voluntariado" nas escolas:
“O único sentido íntimo das coisas é elas não terem sentido íntimo nenhum” (Fernando Pessoa)
Apelando “ao exercício de cidadania que traduz uma expressão de solidariedade com a sociedade, contribuindo de forma livre e organizada para a solução dos problemas que a afectam”, a recente medida do secretário de Estado Valter Lemos, plasmada num projecto de despacho para o recrutamento de professores reformados como voluntários para prestarem serviço nas escolas, em tarefas não remuneradas (ou seja, de borla), traz-me à memória uma expressão de um bom amigo e colega que me dizia, a respeito de situações parecidas, que "favores destes também os espanhóis me fazem mesmo sem me conhecerem de lado nenhum".
E, para que conste, só do referido anexo sobre “áreas de eventual intervenção dos professores voluntários”, somadas as sua parcelas, obtém-se um total de 22 áreas: uma espécie de cardápio de restaurante com muitas “estrelas Michelin” para gostos selectivos e clientela refinada. De forma resumida, para que o leitor não desperdice o seu tempo e eu a minha (ainda que santa) paciência, de um emaranhado de articulados legais, subtraio dessas áreas, apenas, meia dúzia, a saber:
(1) “apoio à formação de professores e pessoal não docente" [para quem possa não estar dentro da nomenclatura, “pessoal não docente” reporta-se a funcionários das secretarias e auxiliares de educação educativa (antigos contínuos)];
(2) “planeamento e realização de Acções de Formação para Encarregados de Educação";
(3) “apoio burocrático-administrativo" [ou seja a burocratização de ex-professores elevada ao seu expoente máximo];
(4) “envolvimento em Projectos de melhoria da sociedade local”;
(5) “desempenho de funções de tutoria”;
(6) “apoio a programas de investigação”.
Como cereja em cima do bolo, na volúpia avaliativa que mora na 5 de Outubro, o projecto de despacho determina que a Escola/Agrupamento de Escolas “avalia periodicamente a(s) prestação (ões) do(s) voluntário(s)”. A avaliação está mesmo na ordem do dia. Já agora, quem avalia a acção governativa dos governantes com a tutela da Educação? Ou será que a avaliação se destina apenas à arraia miúda?
Segundo Valter Lemos, o leitmotiv desta “bondosa medida” legislativa contempla o pedido de uns tantos docentes reformados que se entediam com a passagem dos dias sem nada para fazer. Se, por hipótese, a solicitação partiu de professoras que pretendem encontrar nas escolas o convívio do chá das cinco das tiazinhas de Cascais, desenganem-se. Espera-vos um destino padrasto com deveres avaliados a pente fino e sem quaisquer direitos em contrapartida. Ora, como diz o povo na sua chã maneira de falar, “fama sem proveito faz mal à barriga e ao peito” .
Com a modéstia de reconhecer não ter ideias próprias, Valter Lemos recorre à analogia entre este voluntariado e aquele outro desempenhado nos hospitais com a abnegação de serviço público inerente. Trata-se de um tiro no pé: o voluntariado hospitalar não pressupõe, ao contrário de áreas da docência aqui implicadas, o exercício de funções do âmbito dos profissionais de saúde. E, muito menos, de apoio à formação de médicos e/ou enfermeiros, como um dever estipulado em letra de forma. Como escreveu Madre Teresa de Calcutá: “O dever é uma coisa muito pessoal; decorre da necessidade de se entrar em acção, e não da necessidade de insistir com os outros para que façam qualquer coisa”.
Rui Baptista
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