Ramiro Marques compara o eduquês ao economês. A analogia, apesar de se compreenderem alguns pontos comuns, é, quanto a mim, errada. O economês é um discurso que se quer opaco, construído pelo poder para se justificar através da sua aparência pseudo-científica. Aliás, o problema é que dito economês é mais fácil de se identificar do que o dito eduquês, Neste, cabem tanto as justificações absurdas de sucessivos ministérios, como alguns discursos igualmente opacos sobre a escola mas não resultantes necessariamente de um exercício de poder, como tentativas sérias de pensar e transformar a escola que não se resignam ao status quo. Não caberão certamente no mesmo saco. Nem é sério colocar o Movimento Escola Moderna (e outros) do mesmo lado de Maria de Lurdes Rodrigues.
Continua Ramiro Marques: “tal como os produtos financeiros tóxicos, o eduquês alimenta-se da fabricação fraudulenta dos resultados”. Mais uma vez, a comparação é rebuscada: os produtos financeiros tóxicos são sub-produtos do capitalismo neo-liberal e do jogo de casino em que se transformaram as bolsas de valores; o eduquês parece ser aqui entendido numa definição curta como a prática de um ministério da educação que tem como uma das imagens de marca a obsessão por embelezar as estatísticas como forma de propaganda. O que leva a reafirmar o que nos separa: esta prática de poder não pode ser confundida com outros discursos sobre educação sobre pena de se fazer tábua rasa de realidades muito diferentes.
Na crítica contra o discurso ideológico do poder deste ministério (e a sua prática "educaticida")estaremos juntos. Na cruzada contra formas de pedagogia progressistas estaremos em campos diferentes. O rótulo do “eduquês” para misturar o que não pode ser misturado e tem servido também a uma cruzada conservadora que critica qualquer proposta que não se enquadre nos parâmetros da antiga escola disciplinadora e hierarquizada como sendo uma suposta “pedagogia romântica”. Na verdade, poder-se-ia contrapor que a resposta dada por alguns dos mentores desta cruzada é também uma forma de romantismo, o romantismo saudosista de uma escola de antanho.
Assim, o discurso anti-eduquês tem sido fácil, dirigindo-se directamente ao imaginário de uma escola perfeita e ausente de conflitos. Alguns sugerem mesmo que foram métodos pedagógicos que nunca foram implantados na escola portuguesa que seriam responsáveis pela crise da escola pública. Esta é um fenómeno bem mais complexo do que a rábula de que a ausência de autoridade e de conteúdos matou a escola que estava tão bem antes de lhe mexerem…
E dizer isto é andar muito longe de defender o empobrecimento a que foi votado o ensino público em Portugal. E dizer que muito do discurso anti-eduquês é conservador pedagogicamente é andar muito longe de dizer que todas as teorias pedagógicas que se dizem progressistas o sejam efectivamente. Algumas certamente serão justificações de um poder que quer manter a escola como está ou desvalorizá-la sob a capa de um falso igualitarismo, aprofundando na realidade um fosso entre os que aprendem e os que não aprendem, fosso que coincide mais ou menos com as fronteiras de classe. A escola pública que vale a pena, e nisso coincidiremos, é aquela que não desiste de ensinar com a maior qualidade.
E é de qualidade e de trabalhar junto dos que têm mais dificuldades que se fala quando se fala em ensino para o pensamento crítico e de meta-cognição. Estas são aliás realidades longe de ser práticas dominantes do poder educativo vigente em Portugal. Creio que afirmações taxativas como as que são referidas também por Marques, a partir de Carlos Fiolhais, desviam o debate. Este classifica o eduquês como “concepção instrumental da educação: aprender a aprender, aptidões metacognitivas e aptidão para o pensamento crítico. Nada disto quer dizer alguma coisa. Apenas linguagem que encobre o vazio e a ignorância.” Vazio e ignorância partilhados pela Psicologia cognitiva certamente…
A pesquisa empírica sobre critical thinking e meta-cognição tem mostrado que o conhecimento dos seus processos mentais (e dos outros) e o trabalho afincado sobre eles são instrumentos poderosos de ensino. Não são sinónimos de laxismo ou de ausência de conteúdos. Tal como a preocupação de algumas formas de ensinar na compreensão não são sinónimos de desvalorizar a ginástica da memorização e o desenvolvimento das capacidades de memória. Tal como “o respeito pelo ritmo dos alunos, aprendizagem de competências, ensino por competências” não são sinónimo de culpar o professor e desculpar o aluno.
Clarifiquemos, pois. Acredito ser possível, e eu esforço-me em Filosofia por isso, trabalhar o pensamento crítico e a meta-cognição tentando não incorrer em nenhuma das caricaturas do eduquês, trabalhando desta forma para elevar os padrões cognitivos. E acredito também ser possível trabalhar outros métodos de ensino sem cair na displicência instalada em alguma da escola pública e que essa sim é desistência em ensinar quem mais precisa. Aqui estou longe de ter certezas sobre métodos educativos e a sua eficácia...
O eduquês tem as costas largas. Escrever que “a guerra cultural aos conteúdos tem por objectivo a promoção da ignorância colectiva e, em consequência, a aceitação passiva, conformista e acrítica do status quo” não caracteriza certamente muito do que se classifica como eduquês.
Por mim, prefiro retirar a primeira da afirmação e escrever que este ministério da educação tem como objectivo a promoção da ignorância colectiva e, em consequência, a aceitação passiva, conformista e acrítica do status quo. Com esta afirmação espero contribuir para reforçar a frente necessária de resistência à delapidação da escola pública que desmascare a linguagem de pau de alguns dos cultores do poder que se entrincheiram nos corredores do M.E. e em algumas cátedras.
De resto, que siga o debate sobre como deve ser uma escola pública de qualidade sem estigmas. É dele que precisamos urgentemente. Dele e da luta que nos une. Dele, da luta que nos une e do esforço de todos os profissionais competentes com que me tenho deparado nas escolas por onde tenho passado.
Carlos Carujo
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