domingo, 1 de junho de 2008

Carta aberta aos professores...

CARTA ABERTA AO PROFESSOR



Professor deste país sem rumo, fábrica de pobres e mina de ricos gulosos e sem preconceitos; professor de uma Escola Pública à venda, a quem dá menos; professor, que vês o teu trabalho crescer de forma inversamente proporcional ao teu nível de vida, ao teu prestígio social e profissional, ao respeito que te é devido, pela nobre missão que desempenhas, com formação superior, que alcançaste a pulso; professor do meu país a saque, que, muito provavelmente, estiveste até altas horas da madrugada a preparar as tuas lições, a corrigir os teus testes, a fazer trabalho burocrático para a tua escola; professor, que, muito provavelmente, chegaste ontem a casa com a alma amarrotada, porque tiveste de suportar o desinteresse, a falta de educação, a falta de respeito, a desconsideração, o desprezo pelo teu trabalho e pela tua condição: hoje, é para ti que eu escrevo. Para ti, individualmente, e não para todos os professores do meu país, como tenho feito. Hoje, é apenas contigo que eu quero falar.

Não acredito, estimado colega, que tu concordes e aceites os aviltantes ataques que te têm sido desferidos por esta equipa ministerial. Não acredito, porque sei que prezas a tua dignidade pessoal e profissional e porque isso seria a negação dos valores e princípios inerentes à tua condição de professor e educador. Sei que nunca abdicarás dessa reserva moral. Acredito, nobre colega, que talvez te tenhas resignado, perante um combate que crês perdido, sem retorno. E estou convicto de que essa tua resignação resulta de um equívoco essencial: tu pensas que a tua decisão, num universo de 200.000 docentes, nada vale; que, se tu não te envolveres, outros o farão, que haverá sempre outras escolas que irão à frente, legitimando tudo. Estás equivocado, tragicamente equivocado: em boa verdade te digo que a reversão de toda esta mediocridade está apenas nas tuas mãos, na tua postura individual, na tua capacidade de dizer NÃO. A crença na nulidade da nossa acção individual é a raiz da nossa anulação. Colega, cada vez que damos esmola a um pobre, resolvemos os problemas do mundo. Acredita! Só a morte é irreversível.

Esta equipa ministerial tem agido de forma insidiosa, dolosa, visando apenas a redução de gastos, à custa do depauperamento da qualidade do ensino e da desqualificação dos professores, da sua progressiva funcionalização, factores essenciais para a justificação das escassas regalias, baixos salários, reformas miseráveis, desprestígio social e profissional. Esta equipa ministerial “descobriu” que pode transformar o “professor-pensante” em “professor-aplicador”. O primeiro é um autêntico dinossauro do nosso ensino: já há poucos e esta ministra da Educação pretende ver-se livre deles o mais depressa possível, para que não transmitam aos colegas mais novos as indesejáveis e perniciosas moléstias profissionais e éticas, que fez deles respeitáveis figuras sociais. O segundo exige uma formação mais barata e de nível muito mais baixo, é tendencialmente generalista, com vocação para entertainer e simulacro de assistente social, que não tem tempo nem profundidade cultural para pensar na sua acção didáctica, no Homem que está a promover com a sua rotina diária: é um funcionário, um amanuense que trabalha com enlatados curriculares prenhes de soluções e explicações de todos os passinhos que deve dar; é um servidor de congelados didácticos cozinhados algures, por alguém, que tem a maçada de pensar por ele; é um operário da instrução que pica o ponto e é avaliado como tal, ou seja, pelo número de aulas que dá, pelo número de faltas que não deu, pelo número de alunos rotulados com positiva, pelo número de alunos que conseguiu resgatar ao abandono. Este profissional desqualificado será avaliado e respeitado, de acordo com a sua condição.

Esta equipa ministerial tem agido de forma insidiosa, dolosa, em estilo de “caixa de Pandora”: atrás do novo sistema de avaliação de professores, está a passagem generalizada de todos os alunos, sem que, na verdade seja possível assegurar que todos alcancem os objectivos mínimos (para as estatísticas nada interessa, e como esses serão sempre os filhos dos mais pobres…); atrás desse “sucesso pleno” e “escolarização total”, está o aviltamento do professor, que terá de suportar diariamente a indiferença, o desprezo dos alunos que nada querem da escola, sem poder dar-lhes alternativas sérias e com futuro, sem nada poder fazer por aqueles que querem ser excelentes alunos e distintos profissionais, aqueles que, legitimamente, são ambiciosos e querem muito da vida; atrás deste novo sistema de avaliação está a mediocridade de toda a Escola Pública em geral, e do Ensino Básico em particular.

Mas o quadro ainda não está completo, digno colega, professor deste país a saque.
O que falta ainda? Uns ligeiros sombreados para realçar a perfídia deste “antigo regime” de gestão, que a senhora ministra da Educação pretende que sejamos nós mesmos a apadrinhar, de fatinho branco e asinhas de anjo.

Este “antigo regime” é o último elo da cadeia de comando que irá transformar-te num empregado do ensino, um subalterno sem direito de votar, de eleger os teus representantes, que, por sua vez, também não passarão de capachos do poder, sempre com a ameaça do retorno às carteiras — cada vez menos apetitosas — a pender sobre as suas cabeças. A tutela pressioná-los-á; eles pressionarão os coordenadores; estes pressionar-te-ão a ti; tu… E tudo isto acontecerá, porque o professor deixará de ser a cabeça que pensa e decide na escola. Na sua vez, estarão os caciques locais, os muchachos do partido, a “ortodoxia” que definirá o perfil do teu director — que tu nunca mais elegerás — colocando no cadeirão aquele que assegurar maior assertividade face a determinados objectivos que estarão para além das tuas preocupações. E tudo isto acontecerá, se tu, receando que outros — que não gostarias de ver no Conselho Geral — venham a perfilar-se, te apresentares a eleição, com a melhor das intenções, legitimando assim o mais agressivo ataque à Escola Pública e à tua condição docente, desde a sua criação pelo saudoso Marquês de Pombal. Não te iludas, porque, com este “antigo regime”, o professor vai estar sempre em minoria, subalternizado relativamente àqueles que pretendem que a escola seja apenas uma repartição que carimba certificados.

Íntegro colega, professor dedicado deste país sem rumo, está nas tuas mãos — e apenas nas tuas mãos — a reversão de todo este percurso decadente. Não penses, nem te refugies na acção necessária dos milhares de professores deste nosso Portugal. É da tua decisão que tudo está dependente e não de um colectivo utópico e espontâneo. É a ti que cabe decidir se participas ou não participas neste funeral, porque, mais tarde, é o teu rosto que te vai surgir no espelho, cada vez que nele te mirares.

É a ti — e apenas a ti — que cabe dizer NÃO.

Neste preciso momento em que te escrevo, colegas nossos, de todas as regiões do país, estão a caminho de Lisboa — deixando a família, os amigos e um fim-de-semana de descanso — para tentarem encontrar um rumo para todos nós, para tentarem remar contra esta maré de rebaixamento de humilhação. A nós, que ficámos no aconchego dos nossos lares, cabe-nos respeitar e dar força a essa dádiva, a esse denodo.



A FORÇA DE TODOS ESTÁ NO “NÃO” DE CADA UM.

Luís Costa

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