Um dos argumentos que tem sido utilizado para justificar a posição das direcções sindicais sobre a entrega da ficha de auto-avaliação (FAA) é o de que os sindicatos são organizações responsáveis e, como tal, não podem apelar que os seus representados desobedeçam à lei. Ora aqui está um argumento cuja naturalidade deveria ser de molde a afastar qualquer objecção. E, no entanto, são justamente estes argumentos “naturais” que deveriam suscitar em nós as maiores suspeitas. De facto, o que o argumento mostra é o estado a que chegou o sindicalismo entre nós. E, quando digo «nós», refiro-me a «nós, europeus» (sem querer parafrasear o mote da campanha do agora desvitalizado Vital).
Façamos, de forma despretensiosa, um pouco de história. Convém recordar que o nosso sindicalismo, o sindicalismo de hoje, não é o mesmo que se formou com as lutas heróicas dos operários de finais do século XIX e princípios do século XX, quando o direito à greve e o direito à própria constituição de sindicatos não eram sequer reconhecidos. Em grande medida, o combate pelos direitos laborais foi também, ao mesmo tempo, um combate pelo reconhecimento dos sindicatos enquanto formas de representação dos trabalhadores e pela negociação inter-classista como a forma de relacionamento «normal» entre trabalhadores e patronato ou, para usar a vulgata marxista, entre o proletariado e a burguesia. Como Lénine percebeu, essa luta não tinha a revolução como seu desiderato e seu horizonte. Mas, seja como for, era uma luta por novos arranjos jurídicos e institucionais, o que significa que, na ausência dos mesmos, ela só se poderia fazer contra a legalidade então dominante. Várias décadas de «contrato» social-democrata – uma realidade que só se generalizou (a alguns países) após a Segunda Guerra e, no caso de Portugal, apenas a seguir ao 25 de Abril – levaram a que essas origens ilegais do sindicalismo fossem sendo, gradualmente, esquecidas. O sindicalismo legalista que hoje se pratica é, pois, um produto de um contexto europeu em que a concertação social se tornou a norma. Essa norma, sabemo-lo bem, está hoje em vias de extinção acelerada.
Está-lo, aliás, desde a era Thatcher-Reagan, embora só ao longo dos anos 90, com o colapso retumbante do «socialismo real», o grande capital tenha encontrado os meios políticos para se furtar inteiramente ao “consenso” social-democrata referido atrás. O sindicalismo encontrou-se, de súbito, a falar sozinho numa mesa de negociações da qual o interlocutor tinha desaparecido, entregue à vertigem dos seus negócios e ao desmantelamento dos direitos laborais anteriormente «adquiridos». Em lugar desse interlocutor, o sindicalismo deparou-se com poderes de Estado empenhados em aprofundar a erosão do contrato social-democrata. Uma erosão feita inteiramente com meios legais. Uma erosão que configurava, de facto, uma nova legalidade.
Essa nova legalidade consiste em ilegalizar, de forma gradual mas decidida, os direitos laborais que haviam sido conquistados em lutas contra a lei – lutas ilegais, pois – ou em lutas conformes à lei no quadro da concertação inter-classista.
A relação do sindicalismo com a legalidade inscreve-se, portanto, num mapa muito mais complexo e muito menos linear do que se supõe quando tomamos como evidente a necessidade de os sindicatos respeitarem as leis vigentes. A história do sindicalismo é indissociável de muitos momentos de desobediência civil. O problema é que os dirigentes sindicais de hoje, formatados por esse sindicalismo mole que se constituiu quando os modelos da concertação social e do Estado-Providência pareciam dados irreversíveis, não estão minimamente preparados para enfrentar uma nova legalidade apostada em ilegalizar os direitos laborais. Na verdade, estão desfasados da ordem política actual, funcionando como se as premissas subjacentes ao consenso social-democrata ainda estivessem de pé.
Os sindicatos dos professores, sublinhe-se, não são excepção a esta regra. Antes a confirmam abundantemente.
Ora, por tudo o que vimos antes, as novas leis laborais não podem ser combatidas eficazmente se nos mantivermos dentro do estrito limite de respeito pela legalidade. Pois o problema maior está justamente nesta e no tipo de respeito a que compele. A única forma consistente de combater as referidas leis, a única forma de não sermos derrotados e esmagados por elas, está na recusa de as cumprirmos. Torna-se cada vez mais urgente a redescoberta, colectiva mas também individual, da desobediência civil enquanto matriz histórica da conquista dos direitos cívicos e sociais.
E o sindicalismo de que precisamos, um sindicalismo em sintonia com a luta eficaz contra a nova legalidade anti-laboral, tem de ser um sindicalismo à margem desta última, já que ela nega as próprias condições legais em que o sindicalismo tradicional se pode desenvolver.
Só assim será possível lutar pela reposição de uma outra legalidade: a que devolva o carácter legal a direitos que foram tornados fora da lei.
O sindicalismo que nos falta não estaria, hoje, a apelar a que os professores entreguem, obedientemente, a ficha de auto-avaliação (ainda que se lhe junte uma declaração feita para aliviar más-consciências). O sindicalismo que nos falta teria, há muito, abandonado uma mesa de negociações na qual os sindicatos não se sentam com interlocutores sérios, e estaria a fazer tudo por tudo para que os professores pudessem organizar colectivamente a sua recusa. Mas esse sindicalismo (que nos falta) requer uma cultura de desobediência civil que é incompatível com a moleza negocial da maior parte dos dirigentes sindicais.
Seremos nós capazes de inventar o sindicalismo que nos falta?
Mário Machaqueiro
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