O fim do euro e o esplendor da governança
O euro hoje já não existe. Pelo menos, a realidade a que correspondia, não. Sigamos o raciocínio de Martin Wolf. O euro assentava em três pressupostos:
1. Um Tratado com um Pacto de Estabilidade, que limitava os défices orçamentais, geridos pelos Estados soberanos.
2. Uma cláusula restritiva, uma espécie de sanção virtual de tal modo pesada, que oferecia garantias de confiança que, por muito que custasse aos membros mais indisciplinados da zona euro, detentores de soberania orçamental e, assim, com latitude para prevaricar, estes acabariam por ser reconduzidos à disciplina; era a proibição do Banco Central Europeu resgatar, em momento crítico de aperto, por acumulação de indisciplina, os Estados na iminência da bancarrota.
3. Subjacente à viabilidade do euro estava a presunção de que, economias nacionais muito desiguais na casa de partida, convergiriam a prazo.
Os três pilares constitutivos do euro ruíram. Como nota Martin Wolf, o Pacto de Estabilidade mostrou-se simultaneamente:
1. Incapaz de produzir os efeitos displinadores pretendidos;
2. Irrelevante, porque quando os seus limites foram respeitados, como no caso da Espanha (2005-2007), isso não a impediu (e talvez não fosse sequer possível impedir, mas não vou desenvolver aqui o raciocínio) de gerar défices brutais imediatamente a seguir, como aconteceu no rescaldo da crise financeira e económica de 2008-2009.
A cláusula restritiva foi revogada. O BCE está a comprar obrigações soberanas (e privadas) no mercado secundário, sem limites anunciados (embora com a precaução de as esterilizar imediatamente, ou seja, vendendo activos de igual montante, para não aumentar a base monetária do euro; resta saber se o conseguirá). Em todo o caso, um país pode ser resgatado. Mais, todos os países, na intenção, o serão. Não haverá bancarrota. Na intenção.
Last - e provavelmente o que há de verdadeiramente decisivo nesta história toda - divergência, em vez de convergência. Com condições quase idênticas de financiamento em toda a zona euro (de facto não foram idênticas, pois os países com maior procura interna e mais inflação tiveram uma taxa de juro real inferior), uns - a Alemanha - acumularam excedentes externos persistentes e volumosos, outros, em perda permanente de competitividade, défices externos permanentes e um stock de dívida externa babilónico - o caso português é o paradigma.
A acumulação de dívida privada e pública foi possível porque os mercados financiaram de modo absolutamente perdulário, da mesma maneira, economias em divergência continuada. Resgatando-as, diz Martin Wolf, o BCE está a «proteger o sector financeiro da sua estupidez.» Fim de partida. E deixemos aqui Martin Wolf.
Há alguma reforma institucional capaz de remendar o que esteve na origem de tão patente colapso? Talvez. É a integração política total, quer dizer, a confiscação, aos países incapazes de competir, dos seus poderes de autogoverno. Não se trata apenas de produzir ajustamentos orçamentais. Trata-se de os reformar completamente para que a divergência já longa seja descontinuada. A ideia, ao que parece - o Pacto de Estabilidade está a ser rescrito hoje -, é substituir governos pela governança de Bruxelas. Sem nenhum título de legitimidade democrática. Como em qualquer domínio privado. Trata-se, isto sim, do fim da política e do apogeu da administração. Suponho que isto não seja possível. E que a nemesis de semelhante tentativa e erro faça empalidecer de humildade as presentes dificuldades.
Cachimbo de Magritte
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